
"Fique de costas e feche os olhos", eles disseram. Virei, mas confesso que continuei com os olhos arregalados. Pelo reflexo da janela, pude ver que os dois seguravam uma tela enorme, que estava virada para a parede. Rapidamente fui repreendida. "Ah não, ela está olhando! Fecha logo esses olhos, Palô!". Desta vez obedeci, e nos dois ou três segundos seguintes - tempo suficiente para que virassem o quadro em minha direção - especulei sobre absolutamente tudo o que poderia ter sido registrado ali, naquela enorme tela. Já faz muito tempo que frequento o lar, doce lar deste casal de amigos tão queridos. Sempre que chego, ela está cortando, costurando ou bordando alguma peça nova para sua grife
Maria Preta (que há alguns anos domina 95% do espaço do meu guarda-roupas) e ele está pintando alguma tela que eu invariavelmente faço questão de admirar. Das últimas vezes em que havia estado na casa, ele pintava vários quadros sobre jazz. Por este motivo, meu palpite inicial e silencioso foi justamente em alguma obra da série musical já conhecida. De repente, caiu a ficha: me lembrei da brincadeira tola que havia feito em alguma dessas visitinhas anteriores. "Quando você vai me dar uma de presente, hein?". Pausa para uma meteórica enxurrada de autocríticas. "Ai meu Deus, isso não se faz! Que comentário mais de segunda, Paloma. Tá vendo? Ele levou a sério!". Mas a verdade é que naquele momento a curiosidade estava falando muito mais alto do que qualquer tipo de autocensura; por isso, rapidamente voltei às especulações. "Seria uma pintura abstrata? Flores? Pessoas? Uma paisagem?". Respirei fundo e resolvi me virar, ansiosa para desvendar o mistério. Quando abri os olhos, enxerguei exatamente aquilo o que nunca teria me passado pela cabeça, nem que tivesse especulado por horas a fio: era eu quem estava lá, ocupando todo o espaço da enorme tela. O meu rosto, os meus olhos, o meu nariz e minha boca. No mesmo instante, minhas pernas amoleceram. Fiquei atônita - primeiro por me enxergar e me reconhecer ali; segundo por surpreendentemente gostar do que estava enxergando e, por último, como não poderia deixar de ser, por perceber todo o significado daquele presente - forte, intenso e absolutamente inesquecível. Não é fácil olhar para si numa escala tão ampliada, e muito menos imaginar-se "pendurando a si mesmo" numa parede branca. Ao mesmo tempo, fiquei encantada com a interpretação do artista sobre a minha imagem. As cores, as formas, tudo tão estilizado e ao mesmo tempo tão Paloma! Pode parecer exagero agora, distante do momento, mas convenhamos: definitivamente não é todo dia que recebemos algo assim. Pra ser bem honesta, nunca havia experimentado algo parecido. Talvez por isso, logo eu, que me julgo tão íntima das palavras, me peguei sem saber o que dizer e sem compreender as emoções que automaticamente passaram a transbordar de meu peito. Sendo assim, simplesmente permaneci entre o sorrir e o chorar - não por estar diante de um presente que, é fato, me acompanhará até os últimos dias da minha vida, mas por já me imaginar num futuro bem distante, contemplando-o quietinha da cadeira de balanço, com os olhos marejados de saudade dos meus vinte e poucos anos.
Artista: Milton Tolosa. Óleo sobre tela, 2009.